Disco: Bem Bom - A grande dama da voz


 foto: antonio ribeiro

Com o ótimo "Bem Bom", Gal Costa reafirma seu talento em retratar o que há de novo na música brasileira. 
Com a morte de Elis Regina, Gal Costa tornou-se, nos últimos quatro anos, a cantora numero 1 do país. Ela conquistou esse posto não apenas pela qualidade de sua voz ou das músicas que canta. Seu grande trunfo tem sido traçar, em discos anuais, fiéis retratos das mudanças ocorridas na música brasileira. Do frevo baiano, nos anos 80, ao jovem rock carioca, de Djavan a Marina, todos os movimentos e bons compositores que surgem são ano a ano são incorporados ao seu trabalho. Em "Bem Bom", seu novo LP, que chega às lojas nesta semana, Gal Costa, 40 anos, volta a exibir um painel do que vai pela MPB. Dessa vez, ela conseguiu outra façanha: gravar, num período recessivo da música, seu melhor disco dos anos 80.

Em "Bem Bom", Gal Costa quebra algumas regras que há anos seguia na escolha do seu repertório. A música nordestina - principalmente os frevos -, que já lhe garantiu grandes êxitos, foi simplesmente banida. Também pela primeira vez em dezenove LPs ela deixa de incluir uma música de Caetano Veloso, que participa apenas como cantor em uma das faixas. Em contrapartida, seu repertório nunca esteve tão exuberante, gravando desde Chico Buarque - a belíssima "Ultimo Blues" - até o roqueiro Cazuza, e cobrindo do romantismo mais derramado ao mais endiabrado dos rocks. São aventuras como essa que tornam Gal Costa não apenas a maior cantora brasileira, mas uma espécie de grande dama da MPB, a quem cabe apontar o que há de bom e o que há de novo.

TROMBONE ATREVIDO - Nessa cruzada, ela não tem concorrentes. Simone, por exemplo, especializou-se em dar saltos ornamentais numa piscina vazia: enquanto sua voz melhora, seu repertório torna-se cada vez mais banal e repetitivo. O romantismo de Gal, principalmente no novo disco, beira o estilo derramado de algumas canções de Roberto Carlos, mas ela jamais dilui essa influência, como faz, por exemplo, Joanna. E mesmo Maria Bethânia, que se tornou insuperável no estilo arrebatado e teatral, não quis renovar-se e acabou por perder o posto que hoje pertence a Gal. versátil e afinada com seu tempo, Gal brilha acima de todas e, sem dúvida, o público a tem recompensado: nos anos 80, ela manteve uma média de 500 000 cópias vendidas de cada de cada um de seus discos, enquanto a maioria dos grandes astros conhece altos e baixos em suas vendas.

Em "Bem Bom", a mais vibrante aventura de Gal Costa, encontra-se na faixa título. Nela, a cantora acerta dois alvos com um tiro só: inclui no repertório uma bossa nova com arranjo moderno - tendência em franca ascensão seja entre os tradicionalistas, seja entre os roqueiros. Ao mesmo tempo, traz para o seu time de compositores o personagem mais polêmico, e talvez mais inovador da música brasileira atual: Arrigo Barnabé. Sobre uma batida tradicional de bossa nova e uma letra que rima "amor" com "flor", como nos anos 60, Arrigo e seus parceiros Eduardo Gudim e Carlos Rennó armam uma exuberante malha sonora de ares sinfônicos. O piano acústico e a orquestra se revezam entre acordes tradicionais e dissonantes, solos intimistas e intervenções de um atrevido e impetuoso trombone. Gal acompanha o clima com piruetas vocais e o resultado é umas melhores faixas que já gravou.
Arrigo: bossa nova de vanguarda

CRAQUE DO FUNK - Além da ousadia de gravar um compositor considerado "maldito' pela cartilha da MPB, Gal surpreende pela sua versatilidade. É muito fácil para qualquer interprete, espremer uma faixa de um compositor vanguardista no meio do lado 2 de um dos seus discos e, a partir daí, reivindicar para si uma medalha de coragem. Sentir-se confortável à vontade nessa partitura e alcançar um bom resultado final, porém, são outros quinhentos, e é ai que Gal Costa prova ter cacife de voz e interpretação suficientes para gravar o que quer - e não apenas o que sabe -  com ótimos resultados. Ela tem, como Elis Regina, a qualidade das grandes interpretes: a de moldar sua voz aos gêneros musicais e jamais adaptar a música a sua voz.

Há outros bons exemplos disso em "Bem Bom". Como "Todo Amor Que Houver Nessa Vida" da dupla Cazuza/Frejat, com a qual a cantora crava em seu mapa da MPB atual o que há de melhor no jovem rock carioca. Por questão de gosto pessoal, a cantora transforma o rock num original mambo elétrico, mas nem por isso deixa de brilhar como roqueira na entonação ríspida e agressiva da voz.

É essa busca de atualização que dá aos discos de Gal Costa seu mais forte tempero, mesmo que nem sempre ela grave boas canções: a de Djavan, no novo LP, é uma das mais fracas do compositor. Em contraposição aos rocks, em "Bem Bom", Gal Costa passeia também pelo que há de mais novo, ou de mais significativo, na música romântica. Ao descobrir que Celso Fonseca, o guitarrista de Gilberto Gil, é um bom compositor do gênero, incluiu no disco "Sorte", uma parceria dele com Ronaldo Bastos. De Milton Nascimento gravou a inédita "Quem Perguntou Por Mim", em que o romantismo se mistura às tintas mais leves e ufanistas que marcam a atual fase do compositor mineiro.. E em "Um Dia de Domingo" Gal convidou para os vocais Tim Maia, o craque do funk romântico, num dueto que acabou por estremecer as relações entre ambos e com a gravadora RCA. "Ela mudou a gravação de sua voz depois do disco pronto e o remixou, e saí prejudicado", reclama Tim Maia. "O som da minha voz ficou empastelado, com muito eco, e perdeu o romantismo", ele garante. Aparentemente, trata-se de sutilezas de um perfeccionista: a faixa é uma das melhores do disco.
Tim Maia: dueto romântico e briga

ARES DE MUDANÇAS - "Esse LP inaugura uma fase de mudanças radicais em meu trabalho", anuncia Gal Costa. "Cansei de cantar frevos, já comecei a mudar a sonoridade de minha música e vou diminuir os integrantes do meu grupo. Ainda não sei aonde vou chegar, mas tô decidida." De fato, "Bem Bom" apresenta uma Gal Costa com ares de mudanças. Pela primeira vez ela entregou cada uma das faixas a um produtor diferente, algo raro em qualquer LP, o que resultou numa grande variedade instrumental entre as músicas. A inovação espelha com fidelidade o atual momento de Gal Costa. Enquanto Gilberto Gil e Maria Bethânia, seus companheiros no grupo baiano da MPB, comemoram 20 anos de carreira com festas e shows, Gal, que tem o mesmo de atuação, dispensou as comemorações. Em lugar de rever o passado, ela reluz com pique imprevisível para mais vinte anos à frente da música brasileira.

Revista Veja - 11 de dezembro de 1985 - Okky de Souza

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