Revista: A Estrela Nua



Gal só me surpreendeu uma vez: quando a conheci e a ouvi cantar. Foi uma surpresa tão grande e tão profunda que ainda hoje vivo sob o seu impacto. Na hora eu pensei: "A maior cantora do Brasil". Dai em diante foi só acompanhar os modos com que essa constatação procurou se confirmar. Primeiro  era a possibilidade de realização da cantora de bossa nova ideal, com a combinação exata da emissão e feeling que eu não encontrava em nenhuma outra (virtude ainda hoje intacta, a chuva de prata da sua voz cobrindo o País). Depois a realização do rock carnaval tropicalista que a tornou estrela. Para mim, sempre mais cantora do que estrela, embora esse estrelato tenha sido quase sempre uma exteriorização do brilho de sua personalidade que antes só se revelava (e ocultava) no canto. Ouvi-la e, talvez principalmente, vê-la cantar "Força Estranha" foi, para mim, tomar contato com um momento de integração equilibrada entre as três dimensões - pessoa, estrela, cantora. Vê-la cantar o "Balancê" foi entrar em relação direta com o mito: chorei quase duas horas seguidas depois de assistir o show "Gal Tropical" só por causa do "Balancê". Marina me alertou para o fato de que é perigoso manter uma fidelidade assim, obstinada, à luz que se vê numa pessoa, independente do que acontece com ela ou do que ela faz: nega-se-lhe o drama, todas as mudanças aparecem ilusões de superfície, aprisiona-se a pessoa. De todo modo, creio que só eu compartilhei com marina da opinião favorável ao show "Fantasia", no meu entende o melhor espetáculo que Gal apresentou desde  "Fatal", com exceção talvez de "Cantar", mas "Cantar" fui eu que dirigiu... os números finais de "Gal Tropical" eram lindos, mas todo o show era muito estranho pra mim. "Fantasia" não pareceu (a mim e a Marina) forte, grande e sincero. Às vezes tenho certeza de que esse show teria sido um sucesso se tivesse sido lançado em São Paulo, onde o "Tropical" não pegou como temi que o meu "Velô" talvez começasse bem no Rio. Mas eu gostaria que as pessoas pudesse ver Gal como eu vi no "Fantasia". Estou absolutamente certo de que é um equivoco profundo e perigoso que assim não seja e muitas coisas não andarão bem enquanto isso não se der. Ali sim, eu a vi lindíssimamente bem vestida e bem nua, no caminho certo e cantando bem. Não se trata de corresponder às subdesenvolvidas exigências brasileiras de que as cantoras sejam ao mesmo tempo manequins elegantes e pensadoras políticas (quem reparou na peruca loura da Ella Fizgerald ou nas botinhas de strass de Sarah Vaughan?). O fundamental é que a roupa se torne sagrada para quem a veste. Um corpo nú é uma mensagem complexa. Quando eu tava entrando na puberdade, eu era nudista, misturava meus desejos exibicionistas à ingênua ideia de que roupa é apenas uma repressão desnecessária, achava que não devíamos nos envergonhar do nosso corpo e não imaginava que o homem nunca é nú. Lembro do festival de rock da ilha de Wight, milhares de pessoas nuas na praia: eu ficava excitado, mas não envergonhado ou escandalizado. Gal estava lá. Eu nem me lembro se ela tirou a roupa.


Eu nunca namorei com ela. uma vez tive uma pequena discussão com o jornalista Ruy Castro (terá sido esse mesmo?) por causa dessa mania atual de se perguntar aos entrevistados se já treparam, se já brocharam, ect... Foi na casa do Eduardo Mascarenhas e por causa da entrevista deste (ele já tinha se atrapalhado na resposta á pergunta sobre brochada). Acho uma tolice que as pessoas se sintam na obrigação de narrar suas intimidades. Pois bem, eu e Gal sempre brochamos todas as vezes que tentamos brincar de namorar. No início da nossa carreira, dividíamos a cama de casal de Guilherme Araújo em Sampa. Todas as noites eu tentava seduzi-la com um disco do Bob Dylan e papo-furado. Ela sempre resistiu e terminávamos as noites às gargalhadas. Acho que na época dos Doces Bárbaros, na Bahia, nós tentamos fingir que íamos namorar no hotel onde ela estava hospedada. Foi legal porque aí a vi nua como ela aparece em algumas dessas fotos bonitas e carinhosas que a Marisa fez. Tomando banho. Gal é linda. Tem uma boca linda e é magnifico que por essa boca saia exatamente essa voz. Sempre a senti mulata e uma das coisas melhores de ela ter cortado agora os cabelos e tirado essas fotos nuas é a revelação de sua mulatice. São deslumbrantes sobretudo onde a bunda aparece de perfil,bem negra e bem dura. Há muita alegria física e muita dignidade nesse corpo de mulher madura e menina. eu não sou leitor (yoyeur) dessas revistas de nu. Raramente olho, sem muito interesse, essas publicações. parece que eu não tenho tempo pra isso - é como jogar baralho ou assistir futebol pela TV. Me entedia. Um dia Regina Casé me pediu um conselho se devia ou não liberar fotos suas para uma dessas revistas e eu não soube dar. Gal também me perguntou e eu disse: sou indiferente. Não me sinto, no entanto, indiferente diante de todas as fotos de mulher nua (ou homem nu) que eu vejo. No caso de Gal, especialmente eu sinto mil emoções relacionadas com o encontro de extensões daquela qualidade essencial que um dia eu percebi na sua voz.

Texto de Caetano Veloso  para a Revista Status - fevereiro de 1985

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