Disco: "Gal - Fa-Tal - A Todo Vapor" - Crítica de 1972



Por Mauricio Krubusly*

O lançamento de A Todo Vapor, pode lembrar, por alguns aspectos, o de Tropicália - o que não quer dizer que os dois tenham igual importância dentro da música popular brasileira. Entre as várias semelhanças, os dois álbuns não se prendem a um determinado tipo de critério na escolha do repertório, e reunem músicas aparentemente irreconciliáveis. Em Tropicália, estavam lado a lado Vicente Celestino e Caetano Veloso, Nara Leão e Os Mutantes, a marcha rancho e o bolero, o inglês e o latim. Com Gal, convivem sem conflito Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira e Wali/Macalé, Roberto/Erasmo Carlos e o folclore baiano, Geraldo Pereira e Jorge Ben, isamel Silva e Caetano Veloso.

Mais uma vez, essa reunião se torna importante, pois muitos voltam a dividir em compartimentos, até mesmo segundo o grau de brasilidade (?) - esquecidos das lições do movimento que se convencionou chamar de Tropicalismo. O repertório sem preconceitos dos dois LP's de Gal Costa adquire, assim, a importância de mais uma advertência, de mais uma abertura de  perspectivas - "mais uma" porque seria lógico acreditar que essas limitações estivessem desfeitas. Mas o que temos ouvido, ao contrário, são discos repetitivos, velhos no lançamento.

Esse é o quinto LP de Gal Costa. Ela começou, profissionalmente, trabalhando com Augusto Boal, em dois shows de teatro de Arena de São Paulo, em 1965: "Arena Canta Bahia" e "Tempo de Guerra". Seu primeiro disco foi um compacto-simples para a RCA. Depois, já na CBD, o primeiro LP: "Domingo", com Caetano Veloso. E mais: Gal Costa ("Que Pena", "Baby", "Divino Maravilhoso"); Gal ("Meu Nome é Gal"); e, "Le-gal" ("London, London"). Durante todo esse tempo, fez shows. E cometeu muitos exageros. Por um momento, chegamos a pensar que ela iria se perder nos excessos, restanto apenas a caricatura do que poderia vir a ser a cantora revelada no "Domingo". Mas os exageros ficarm para trás e formam, agora, uma fase que pdoe ter sido indispensável como etapa de trabalho que resultou no equilibrio atual. E a gritaria inconsequente do período de "Meu Nome é Gal" foi abandonada. Em vez disso, revela-se uma cantora que, sem perder sua força e agressividade, explora ao máximo suas qualidades. Gal absorveu, selecionou e usa, no melhor sentido, todas as influências e informações disponíveis, demonstrando ampla renovação em suas maneiras de cantar.

Tudo isso está evidenciando, mais do que qualquer outra faixa, em "Falsa Baiana". Ao estalar a língua, logo no início, Gal retoma o que Caetano explorou  no final de "Asa Branca" e depois em "It's a Long Way". A partir daí, ela desenvolve as mais distintas formas de interpretar esse antigo samba de Geraldo Pereira, tantas vezes gravado antes. E se isto tivesse algum interesse, poderiam ser identificadas contribuições de muitos cantores, de João Gilberto a Ciro Monteiro. O que importa, isto sim, é ressaltar: Gal Costa não copia; ela incorpora à sua maneira as possibilidades que outros haviam lançado. Não bastasse essa síntese - sua nova gravação de "Falsa Baiana" representa a reunião de diversos momentos importante da música brasileira, ela transform ao samba de Geraldo Pereira em uma nova música, única, soma de muitas outras. E termina homenageando João Gilberto - ai sim, com uma citação, direta e inconfundível.

Este amadurecimento da cantora Gal Costa pode ser avaliado pela simples comparação entre novas e antigas gravações das mesmas músicas. Por exemplo: "Coração Vagabundo" (do LP "Domingo), "Hotel das Estrelas" e "Falsa Baiana" (de "Legal") e, principalmente "Vapor Barato" (do último compacto duplo).

Além da diversidade que dá equilibrio ao repertório, os dois discos se completam, também, por causa dos arranjos. No primeiro e na última faixa do segundo, está a Gal mais agressiva. No segundo, o retorno da cantora delicada que ela também sabe ser. Acompanhando-se ao violão - no mais das vezes de forma despretenciosa - consegue resultados excelentes. Mas esta suavidade não é sinônimo de perda de força, e nem se restringe ao segundo disco - em "Assum Preto", por exemplo, ela consegue a interpretação mais forte e doída de uma canção de Luiz Gonzaga, desde que "Asa Branca", foi recriada por Caetano Veloso.

Outra coisa que lembra Tropicália: A Todo Vapor reúne aqueles que desenvolvem o trabalho mais criativo dentro da música popular. Assim, o álbum já seria importante apenas por revelar canções como "Pérola Negra" (Luiz Melodia), "Mal Secreto" (Wali-Macalé), "Dê Um Rolê" (Morais e Galvão, dos Novos Baianos), "Luz do Sol" (Carlos Pinto e Wali). E mais - é claro - Caetano Veloso, (três observações sobre "Como Dois e Dois": 1) a qualidade constante em todos os trabalhos de Caetano Veloso: desta vez jogando muito bem com os sons das palavras - coisa que se repetiu no seu frevo "Chuva, Suor e Cerveja" - diz o que quer e entende, com a sutileza de sempre, e com uma simplicidade que torna tudo muito explícito; 2) que Gal Costa, com a sua interpretação perfeita, roubou de Roberto Carlos a canção que Caetano havia dedicado a ele, e "Como Dois e Dois", entre uma gravação e outra, parece uma música diferente, 3) a importância de uma interpretação adequada a cada música).

Mas Gal não está cercada apenas de bons compositores - é acompanhada por um guitarrista da qualidade de Lanny, orientada com segurança por Wali etc.

Finalmente, uma das qualidades essenciais de A Todo Vapor: suas falhas. O álbum não pretente ser tecnicamente perfeito. Tem muitas falhas, como por exemplo: a microfonia em "Hotel das Estrelas" e "Assum Preto", o erro da guitarra de Lanny em "Maria Bethânia", o permanente desequelíbrio entre a voz e o acompanhamento; e muitas outras imperfeições. Além disso, o disco não é pródigo em palmas e delírios da platéia - pois não é mesmo possível levar um teatro para uma sala de jantar. Assim, a manutenção dessas falhas não faz com que elas se transformem em defeitos. Ao contrário: são um sinal de realismo diante das condições do Brasil, onde a perfeição ténica nem sempre é conseguida mesmo quando a gravação é cercada  por todas as garantias de um estúdio. E a solução adotada por A Todo Vapor acaba sendo um conselho para aqueles que se especializaram em gravações ao vivo.

Depois de 4 LP's, muitos compactos e shows, Gal Costa aparece em seu primeiro álbum duplo - o seu melhor trabalho. Embora lançado na última semana de 71, é o disco que marcou um bom começo de 72. De 72, porque ele deve ser ouvido, com atenção, durante muito tempo ainda. Como Tropicália, que ouvimos até hoje.

*Revista Senhor - 14 de fevereiro de 1972
Coluna Som Popular 
Por Maurício Kubrusly

Comentários

  1. O repertório é excelente,mas eu tenho um certo problema com gravações ao vivo,eu nunca gosto.Eu devo ter ouvido-absoluto no quesito voz,só pode.Eu gosto de ''Antonico'',parece versão de estúdio.

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