Disco: Fa-tal: Só Gal ia dos cochichos de João Gilberto aos urros de Janis Joplin


Em 1971, quando rolou o show "Vapor Barato", transformado  num disco duplo gravado ao vivo no Teatro Tereza Raquel, no Rio, Gal Costa, mais que musa, era a estrela sobrevivente da saga tropicalista. Sob as botas do governo Médici (1969/1974), com os mentores do movimento, Caetano e Gil no exílio, a juventude antenada da época vivia entre a guerrilha e os vapores baratos que subiam dos charos acesos pela posição lisérgica do governo. Imantada por Gal, boa parte desta fatia viajante da galera se reunia (no Rio) num trecho da praia de Ipanema repleto de dunas, onde seria construido um emissário submarino de esgoto. Eram as "dunas do barato", ou como se dizia no baianês da época, "as dunas de Gal".

Neste disco/show, além de segurar a barra tropicalista, Gal já rodava a baiana de maior cantora da MPB. Só ela ia dos cochichos de João Gilberto aos  urros de Janis Joplin sem trair a Dalva de Oliveira que mor ano sentimentalismo deste país de três raças tristes. "Vapor Barato", também conhecido por "Gal Fatal", é obra prima. O repertório linka folk ("Fruta Gogoia", "Bota a Mão nas Cadeiras"), emepebê antepassada ("Assum Preto", "Falsa Baiana") e o sotaque rock da época ("Hotel das Estrelas", "Como Dois e Dois", "Dê Um Rolê"), tudo dentro da atitude marginal que cutucava o sistemão com um jogo de da(r)dos poéticos.
Quase todas as faixas escolhidas tem dupla leitura. Desde o velho samba "Antonico", do genial Ismael Silva, um pedido de auxílio que vinha a calhar naquelas trevas, até os retratos a ferro e fogo da época, escritos por Macalé e Waly Salomão. Além da novobaiana "Dê Um Rolê" ("Enquanto eles se batem/Dê um rolê"), explodem os versos opressos de "Mal Secreto" ("Massacro meu medo/Mascaro minha dor"), "Hotel das Estrelas" ("Sob um pátio abandonado/Mortos embaixo da escada"), "Luz do Sol" ("Quero ver de novo/A luz do sol") e a faixa-título "Vapor Barato" ("Eu tô indo embora/Talvez um dia eu volte, quem sabe?"). Reciclada para o sucesso pelo filmaço "Terra Estrangeira", de Walter Salles Jr., que fotografa grão a grão o exílio desértico da era Collor, esta música atesta que o país se repete como uma farsa constantemente reescrita.

Gal inicia o disco pianinho, acompanhando-se ao violão até que sua voz de colocação joãogilbertiana (confiram "Falsa Baiana", "Coração Vagabundo"), explode junto com as guitarras e microfonias. De "Pérola Negra" às canções de exílio enviadas por Caetano "Maria Bethânia" e "Como Dois e Dois", Gal cimenta o mito de cantora perfeita. Tem a técnica (por vezes incorpórea) de Elis Regina e a comoção (nem sempre lapidada) de Maria Bethânia. É a rainha do cool drama. Sua voz queima como gelo e corta feito diamante. A emissão límpida convive com a sujeira da rouquidão provocada, o grito preso na garganta e a confidência invasora. O tropicalismo gerou uma cantora fatal. Ou melhor, fa-tal.

Revista Bizz - Tárik de Souza - Julho de 1996

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