Disco: "Gal 69" - "É um disco que se compra, se ouve, se guarda".


Eu assistia, com Glauber Rocha, à exibição de “Terra em Transe”, em Cannes, 1967, quando perguntei a ele quem era a vocalista de determinada sequência. “É a Gracinha”, respondeu ele. E acrescentou: “É uma das maiores cantoras brasileiras”, Bem, se fosse verdade, ninguém sabia disso, pois Gracinha era uma jovem baiana, Maria da Graça. Só algum tempo mais tarde ela veio a se chamar Gal Costa e mostrar que Glauber tinha razão.


Maria da Graça, Gracinha, Gal Costa – depois de Maria Bethânia, Caetano, Gil – começou a surgir em São Paulo (antes um LP gravado com Caetano), principalmente no programa de Roberto Carlos. Hoje todo mundo sabe quem é: uma das maiores cantoras brasileiras. Da garota tímida e provinciana, transformou-se na cantora agressiva, de cabelos grandes, uma das personalidades mais marcantes aparecidas nos meios musicais, nos últimos tempos. Mas no fundo, uma menina “de mentalidade mediana (...) não devo nada a ninguém/ pois eu sou feliz, muito feliz/ comigo mesma”.


Várias apresentações em televisão, dois ou três long-plays, dois shows em teatros, foram mais do que suficiente para realizar a imagem de uma nova cantora. E com a ida de Gil & Caetano para Londres, ela é uma espécie de continuadora, herdeira dos dois grandes compositores baianos. Ela ficou sozinha, com alguns amigos, mais as músicas de Jorge Ben. Mas com Gil ela canta: “Deus me livre de ter medo agora/ depois que eu já me joguei no mundo”.


A imagem: exterioridade baiana, sincretismo com o novo som do rock and roll, Jimmy Hendrix, principalmente Janis Joplin, conotações individualistas & românticas & agressivas dos hippies; no panorama interno, saturação da bossa nova (poesia tipo “meu amor/ uma flor”; há uma música de Caetano que é a melhor crítica do movimento já feita); tudo isso aliado a uma excelente voz & personalidade; certo intelectualismo constantemente criticado (quase todos eles estudaram no Colégio de Aplicação, introdutor, no Brasil, de métodos pedagógicos avançados). A personalidade formada, trabalho constante, sucesso alcançado.


Agora a Philips lançou seu terceiro LP. A grande simplicidade de comunicação de Caetano Veloso com “Cinema Olympia”: “Não quero mais estas tardes mornas/ normais/ não quero mais videoteipe, mormaço, março, abril”. Canta a saudade de um cinema, poeira da infância, “na geral”, querendo ouvir “gargalhada geral, do meio-dia até o amanhecer/ na matinê do cinema Olympia”. É das melhores faixas do disco, juntamente com “Tuareg”, de Jorge Ben: “pois ele é sentimental, humano, é nobre, é mouro, é muçulmano” – Ben, em ritmo exótico e letra simples, exalta um guerreiro da terra de seus antecedentes (da Etiópia). De Gilberto Gil, canta uma experiência marcusiana: “a cultura e a civilização/ elas que se danem, ou não/ somente me interessam/ contanto que me deixem meu cabelo belo/ meu cabelo belo/ como a juba de um leão (...) eu gosto mesmo é de ficar por dentro/ como eu estive algum tempo/ na barriga de Claudina/ uma velha baiana cem por cento”. Como as demais experiências de Gil, esta é sensacional, e de grande beleza (eu disse antes “marcusiana”, porque contra o logos de dominação: vide “Eros e civilização”). Outra faixa de Jorge Ben: “País Tropical” – aí, a maior atração é o embalo do arranjo, e uma interpretação bastante diferente da interpretação badalativa de Simonal. A última faixa desse lado do disco, “Meu Nome é Gal”, do Roberto Carlos, é mais fraca que as demais.


O outro lado abre com “Com Medo, Com Pedro”, de Gilberto Gil, excelente: “Deus me livre de ter medo agora/ depois que eu já me joguei no mundo/ Deus me livre de ter medo agora/ depois que eu já pus os pés no fundo”. Em “Empty Boat”, dá uma interpretação diferente da do próprio autor (Caetano) – acompanhada por Macalé. Novamente Gil: “Objeto Sim, Objeto Não”, ligado a experiências anteriores, “Objeto não identificado” (de Caetano) e “Objeto semi-identificado”. Aí, canta, trazendo uma alusão ao “Alegria, alegria”, de Caetano: “eubioticamente atraídos pela luz do Planalto Central/ das Tordesilhas / fundarão o seu reinado/ dos ossos de Brasília...”, para continuar aludindo à “Terra em Transe”: “depois do fim do mundo é o reinado de ouro/ depois do fim do mundo/ o reino de Eldorado”. A música canta novos seres que virão “do fundo do céu, do alto do chão”. Encerra o disco “Pulsars e Quasars”, de Capinan e Macalé, a dupla que sacudiu o Festival da Canção – a anti-música canta aqui “ruídos coloridos para a Gal”, pois “os ruídos terão os sentidos perdidos” quase sempre com gritos e num tom monocórdio, monótono, a propósito. Termina bem o disco.


O último LP de Gal Costa é um disco que se compra, se ouve, se guarda.

Jornal O Globo - Flávio Moreira da Costa - 26/12/1969 

Enviada por Tiago Marques

Comentários

  1. A Gal cantava no programa do Roberto Carlos? Preciso ver isto.Quanto a música ''Meu nome é Gal'',eu concordo com a opinião dele,é fraquinha mesmo.Em 1979,a Gal passou a música a limpo e melhorou-a cem por cento.

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