Show: "Todas as Coisas e Eu: Gal enfrenta a alegria - e a tristeza.


Ela voltou, a grande cantora. Nesse tempo que andou ameaçando se perder de todas as coisas e de si, a artista Gal Costa, 58, se anestesiou também de uma série de sentidos: tato, paladar, audição, visão, faro...

Interrompeu contato com parte de seu público (eram várias as cadeiras vazias na estreia de "Todas as Coisas e Eu", quinta, enquanto lá em casa "Celebridade" quase acabava). Fechou os olhos e os ouvidos para repertórios, arranjos e modos novos de ser Gal Costa. Hoje, corre com gana trás do prejuízo, de seis ou sete sentidos.

O resultado é um espetáculo todo errado, todo certo. Um acerto interrompe um erro que substitui um acerto que se muda num erro. Zune um código morse nervoso. A grande cantora se despe assustada, mas viva, muito viva.

Fotografa o próprio medo, quando ao cantar "Um Favor" de Lupícinio Rodrigues (que desde 1977 é dela, muito dela) erra a letra feito uma colegial, cantora imatura em primeiro show. Estava ao violão ex-abandonado; pelada, se desculpa à plateia: "Que situação cantar e tocar, né?".

Tem a seu favor um roteiro que enfrenta um ponto nevrálgico de sua história recente: o ruído entre alegria e tristeza mal localizadas - equivoco central do CD (todo errado) que deu origem ao show.

Agora, começa o show à capela, com "Alguém Cantando" (Caetano Veloso,1977), tornando mais aguda (e bela) a melancolia inerente à canção. Revela que a Bahia também é triste, público segredo.

Pelo começo canta carta de suicídio "Três da Madrugada" (Torquato Neto e Carlos Pinto, 1973). Captura todo o desespero do poeta maldito, acerta. Pelo final avança uma hora no tempo e festeja o "galo cantou às quatro da manhã' de "Na Linha do Mar" (Paulinho da Viola, 1973). Faz sambinha alegre, ignorando que "vou-me embora desse mundo de ilusão" também e suicídio; erra.

Acerta; canta a brejeira "Imbalança"(Luiz Gonzaga e Zé Dantas,1952), ri e sorri. Erra: canta a fatalista "Fim de Caso" (Dolores Duran, 1959), ri e sorri. Tenta colocar a alegria em seu devido lugar, na pedra fundadora da Bahia "Alegria" (Assis Valente, 1937). Não consegue ser tão alegre como a letra queria; acerta em cheio, errando. Nua.

Ao revisitar o mais fino de sua obra, veste-se da capa transparente da grossa melancolia. Nessa noite "Um Favor", "Assum Preto" (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1950, dela desde 1971), "Vapor Barato", (Jards Macalé e Wally Salomão, 1971) e "Força Estranha" (Caetano Veloso, 1978, de Roberto Carlos e dela desde então) são as coisas mais lindas que já existiram.

São tristes, tristes, tristíssimas. Ostentam o semblante sério da maturidade, não o riso de Alice da juventude. Obrigado por ter voltado, grande cantora.

Como é difícil se despir, a mulher ainda se protege no artifício, no show que soluça. Os sambas-canção sabotam a fluência; um tosco montinho em que sobe para "Nada Além" (Custódio Mesquita e Mário Lago, 1938, dela desde já). ameaça literalmente derrubá-la.

A cenografia de Bia Lessa entra colapso no clímax de "Vapor Barato" - velas sobem e descem histericamente, inconformadas com o que tá acontecendo: o reencontro da artista consigo. Nos uivos finais de sua canção-mito, a expressão se convulsiona e retorce; Gal se curva, vira loba, bicho, fera ferida. esquece de temer a perda da beleza, escancara os cabelos brancos na fronte da artista.

Ao final, subiu feito onça uma montanha, não o telhado de gata de 1993. A gente não se satisfaz, quer sempre mais, fica com vontade de ouvir discos e shows feitos só de vapores baratos. Não podemos exigir-lhe isso, mas ela já usa quatro ou cinco sentidos, em prol da causa. Até amanhã, Gal.

Pedro Alexandre Sanches  - Folha de São Paulo - 26 de junho de 2004.

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