Disco: "Gal Costa 1969" - Gal Costa quase divina, maravilhosa


Data de 1967 o LP “Domingo”, reunindo Gal Costa e Caetano Veloso, feito à base de composições líricas deste: “Coração Vagabundo”, “Onde Eu Nasci Passa Um Rio”, “Avarandado”, “Um Dia”, etc. Após o domingo vem a segunda-feira, mas em termos de evolução foi como se tivesse havido um salto enorme no calendário musical de ambos.


Gal retorna agora com um repertório inteiramente renovado, cuja tônica é o tropicalismo e o iê-iê-iê. Parece-nos ver daqui do alto destas páginas o franzir de quarenta mil narizes respeitáveis ao mero enunciado dessas duas palavras. Calma, senhores: nem tropicalismo nem iê-iê-iê mordem. A verdade é que não há gêneros nem escolas intrinsecamente maus; há obras boas ou más. O LP “Gal Costa” (a imaginação para dar um bom título não parece ser o forte de nossos diretores artísticos) abre esplendidamente com “Não Identificado”, onde Caetano Veloso desenvolve, com inteligência e originalidade, o tema de “uma canção para ela”, chegando a uma imagem que certamente não passaria pela cabeça de Castro Alves ou Casimiro de Abreu: “Minha paixão há de brilhar na noite / No céu de uma cidade do interior/ Como um objeto não identificado”. A letra do xaxado “Sebastiana”, de Rosil Cavalcanti (que Gal canta com Gilberto Gil) é do mais puro e entranhado bestialógico, mas Gal, ostentando uma maleabilidade de voz surpreendente, desliza velozmente por todos os meandros da composição, como derramando mel à sua passagem. “Lost In The Paradise” é mais uma das mil experiências & pesquisas do autor de “Alegria, Alegria”. Não fica nada a dever a muito fox americano por aí. “Namorinho de Portão” é outra deliciosa página bem interpretada por Gal, em que Tom Zé goza várias coisas, inclusive a mentalidade “quadrada” dos pais. Pois para o papai “o mundo anda muito mal” e... “lá vem conselho, coisa e tal”. “Saudosismo”, intencionalmente construído sobre “Corcovado”, de Antônio Carlos Jobim, recorda com saudade sucessos de João Gilberto. “Eu, você, João girando na vitrola sem parar...”. Mensagem? Talvez esta: “É que aprendemos com João/ Pra sempre ser desafinados”. Com “Se Você Pensa” precipitamo-nos, sem paraquedas, no “inferno” do iê-iê-iê. Roberto Carlos e Erasmo Carlos, os autores. Gal talvez um pouco menos à vontade. A concordância sofre aqui um pouco: “Se você pensa que vai fazer de mim/ O que faz com todo o mundo que te ama...”.


A primeira faixa da face B é da mesma dupla que parece, aliás, considerar a gramática uma ciência superada: “Talvez até arranje alguém/ Alguém que eu possa acreditar...”. Bem mais em seu elemento parece-nos Gal retornando a Caetano e seu “Divino Maravilhoso”. Composição que guarda muita afinidade com “Questão de Ordem”, de Gilberto Gil. “Que Pena” não está entre as melhores nem entre as piores composições de Jorge Ben. Caê e Gal cantam em dueto conseguindo valorizar uma letra em que se verificam vários contrabandos na fronteira do poético com o banal. Esse equilíbrio Jorge poderia aprendê-lo com Caetano, autor dessa pequena obra-prima moderna que é “Baby”, onde encontramos a melhor Gal Costa: “Você precisa tomar um sorvete/ Na lanchonete/ Andar com a gente”; ou adiante: “Você precisa aprender inglês/ Precisa aprender o que eu sei/ E o que eu não sei mais”. “A Coisa Mais Linda Que Existe” não é certamente a mais linda composição de Gilberto Gil e Torquato Neto. Mas tem sua graça, boa parte da qual corre por conta da intérprete. O álbum chega ao final com “Deus é o Amor”, de Jorge Ben, que talvez posse valer como um “happy end” para o LP, já que termina lembrando aos incréus que “Deus é a vida, a luz e a verdade/ Deus é amor, a confiança, a felicidade”.


Resumo da ópera em português claro: repertório não irrepreensível com vários pontos altos, cantora extraordinária, arranjos no figurino de Rogério Duprat, Gilberto Gil e Lanny, rosto de Gal acondicionado em plumas e cabelos na capa e, mais uma vez, a Philips nada tem a declarar sobre os seus discos na contracapa. 

Cotação: 4 ½ estrelas.

  


O Globo, 18/03/69, Ary Vasconcelos

Enviado por Tiago Marques

Comentários

  1. Como os críticos tinham má vontade com as músicas do Roberto Carlos! Deve ser por isso que o coitado vive na moita.

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