Disco: Baby Gal: Uma cor forte no reino das gatas pardas


O que faz uma grande dama da canção? Uma vida de laceramentos talhados na voz em farpas, tal Billie Holiday? Certa nobreza proletária nos erros e cadência de Elizeth Cardoso? Uma grande naturalidade para flexionar o instrumento corporal segundo o ritmo e a harmonia, como Sarah Vaughan, Betty Carter ou Ella Fitzgerald? Quem sabe a impetuosidade aliada à técnica, capazes ambas de assaltar auditórios ou pregar manhãs libertárias como Elis Regina?

A verdade é que a canção e suas matriarcas (exceções de Nana Caymmi e da ala tradicional, abençoada pro Clementina de Jesus, com o estandarte de Clara bem conduzido ainda por Beth Carvalho) andam barateadas pelo desenfreado imediatismo. Ninguém está afim de escavar e polir ganga bruta como a turbulenta Elis fez com Ivan Lins, João Bosco, Tim Maia, Renato Teixeira, Belchior, Milton Nascimento e mesmo, nos primórdios, Gil e Caetano. Todo mundo quer comprar feito. Bateu, valeu. De preferência, boleros e baladas que não perturbem a audição tranquila (vidros hermeticamente fechados contra pivetes e trombadinhas) nos engarrafamentos das megalópoles.

Nesse panorama desolador, onde todas as gatas são pardacentas, Gal Costa em escapado à areia movediça da mesmice. Assim como foi cálida pré-tropicalista ("Minha Senhora", "Coração Vagabundo"), ligou-se na tomada do primeiro choque elétrico da MPB, em "Baby", "Meu Nome é Gal" e outras distorções Janis Joplianas. Da cantora de antologias ("Gal Canta Caymmi" e "Aquarela do Brasil"), a efusiva show-woman psicodélica de "Fa-tal", ou Carmem Miranda/Dalva de Oliveira redivivas de "Gal Tropical"  ou "Fantasia".

Este "Baby Gal", de certa forma, liquidifica tais antecedentes num software básico. Sob medida para um país que já tem seus 20 mil minicomputadores caseiros, porém ainda mata de fome ao norte e afoga ao sul. Mazelas e mais valias: do samba exaltação de Gil ("Bahia de Todas as Contas"), que também tem direito à sua "Na Baixa do sapateiro"; ao lustroso bolero-lero "Mil Perdões", de Chico Buarque repisando velhos refrões, numa imaginável psicografia com sua aparente antítese, Nelson Rodrigues. Tem Moraes "carnaval" Moreira ("Grande Final"), pulando numa única perna musical ("pé de saci/pererê/pererê/pererê/pererê) mais Djavan do bom ("Sim ou Não") ou do ralo ("De Flor em Flor"). Poeta-mór de nossas ambiguidades, Caetano comparece numa parceria com Vinicius Cantuária onde confere jovialidade a um arrozoado metafísico ("Sutis Diferenças").

Melhor que reouvir nossa madeleine tropicalista, "Baby" velha de guerra, (num backing vocal supérfluo do motonivelador Roupa Nova) é saudar em duas das faixas mais acesas do LP ("Olhos do Coração" e "Rumba Louca") assinaturas de gente como Tunai, Sérgio Natureza, Moacyr Albuquerque e Tavinho Paes. Gente que não chega a ser debutante mas tem tudo para firma-se, impressa numa voz possante (ultimamente ainda mais aperfeiçoada nas artes de tensão e relaxamento) como a desse "Baby Gal". Uma grande dama que recusa pompa mas não foge a circunstância.

Tárik de Souza - Revista Som Três - 1983

Comentários

  1. O LP faz parte da minha coleção.O crítico sequer mencionou a minha favorita do álbum,''Eternamente''.

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