Disco: Bem Bom: Dotes múltiplos de Gal



A tecnopopcracia embaralhou de vez as cartas dos grandes ases. Não há mais ídolo de massa imune à contaminação do sucesso premeditado. A expectativa do sucesso condiciona o repertório, a imagem e até o batom. A supercampeã Gal Costa, no entanto, graças a multiplicidade de seus dotes, mostrou ser possível inverter os signos do consumo maciço. Seu LP "Profana", do ano passado, vendeu toneladas a partir de um rock-balada bem jovem guarda ("Chuva de Prata") e uma versão, ainda que do repertório de Stevie Wonder ("Nada Mais/Lately). Traços redutores para uma artista do seu porte, que Gal conseguiu maximizar.

No LP desse ano, o segmento nordestino foi banido em troca de mais espaço para o rock, que em variados matizes, arrepia três e meia das onze faixas. ("Todo Amor Que Houver Nessa Vida", de Cazuza e Frejat, é levado meio tempo em bolero, meio em rock). As baladas e boleros, às vezes em composição mista, ocuparam quase todo o restante do disco. Mas, as canções, uma pura e simples ("Quem Perguntou Por Mim", de Milton Nascimento e Fernando Brant), outra refinada e etérea ("Romance", de Djavan) também obtiveram espaço, tal qual "O Ultimo Blues", emprestado à trilha de "Malandro", de Chico Buarque. Sobrou até uma vaga para a pitada de audácia que Gal sempre reserva à sua legião de conaisseurs: uma bossa noviça que incorpora a atonalidade ("Bem Bom"). Ela resulta de um inesperado trio paulista formados pelos vanguardistas Arrigo Barnabé, Carlos Rennó (o de "Escrito nas Estrelas") e Eduardo Gudim, integrante da segunda geração sambistas paulistas, ao lado de Carlinhos Vergueiros e Roberto Riberti.

"Bem Bom", foi escalado para fazer par com "Bim Bom", regravação de uma das raras composições de João Gilberto, uma espécie de baiãozinho bossa nova. Autorizada a gravação, semana passada, surgiram desacordos: o autor teria voltado atrás e a escalação da música corria perigo, atrasando o disco, programado para chegar às lojas no início da próxima semana.

O LP (que leva apenas seu nome no título), abre um leque de tendências que expõe a cantora a todas as provas. Ela usa tanto os recursos de sopros quanto a reverberação de sua voz privilegiada. um equipamento técnico privilegiado que lhe permite soar como guitarra estridente num rock escolar da dupla Roberto Carlos e Erasmo Carlos ("Musa de Qualquer Estação"), ou flauta, em contraponto às verídicas flautas do mencionado "Romance", de Djavan. "Em parte a gente é arte/em outra parte é técnica", arrisca o rock "Acende o Crepúsculo" de Marina e Antônio Cícero, uma das poucas letras que fogem às convenções poéticas do LP de massa. Nesse sentido, depositou-se toda a ênfase nas qualidades instrumentais da voz de Gal. os textos são poucos eloquentes. Quase todos giram sobre temas recorrentes, de paixões a paisagens.

Em seu segundo LP à frente de uma firma própria, Gal Costa evoca o princípio dos quase 20 anos de carreira discográfica num dueto com Caetano Veloso, o parceiro do LP de estreia ("Domingo", 1967), na faixa "Sorte", logo na abertura. O outro duo do disco também traz a evocação de uma dupla. "Um Dia de Domingo", balada dividida com o vozeirão de Tim Maia, lembra justamente a estreia do cantor, só que ao lado de Elis Regina em "These Are The Song", em 70. No espaço do improviso, assim como ocorria no dueto com Elis, Tim vocaliza com muito ritmo, engrolando palavras inventadas, num diálogo com Gal que faz a música decolar de sua banalidade programada. Outro remake do disco lembra "Fatal", idealizado por Wally Salomão, por sinal, um dos coordenadores artísticos  da gravação, ao lado da própria Gal e de Miguel Plopschi. Os arranjos foram confiados em maior número a tecladistas (Luizinho Avellar, Lincoln Olivetti, Ricardo Cristaldi, mas o artesanato de Djavan, em "Romance"), ou a arquitetura de móbiles de Arrigo Barnabé e Eduardo Gudim, que fazem a voz de Gal flutuar no espacial "Bem Bom", fornecem a dose indispensável de estranhamento para o equilíbrio acústico eletrônico do disco.

Produzido com esmero, vocalizado com talento, o novo LP de Gal Costa candidata-se a elevar a temperatura qualitativa do atravancando hit parade natalino.

Tárik de Souza - Jornal do Brasil - 07 de dezembro de 1985.

Comentários

  1. Tárik de Souza e Okky de Souza.Não,não são parentes,os dois já escreveram na revista Veja.

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