Disco: Gal: No tabuleiro da baiana


Demorou para acontecer, mas a espera valeu a pena. Depois de mais de uma década de produções insípidas ou açucaradas, a baiana Gal Costa, 47 anos, acaba de lançar um disco que traz de volta a intérprete apaixonada que entusiasmou tantos fãs na década de 60. No LP "Gal", recém-chegado às lojas de todo o País, ela exibe o seu brilho e versatilidade. A cantora mostra uma forma arrebatadora, como não se via desde "Água Viva", de 1978. "Nos anos 80, a Gal passou a ter um repertório cheio de concessões, composto por baladinhas. A sua carreira apresentava tendências conformistas", afirma o poeta Wally Salomão, amigo de Gal Costa. A própria cantora reconhece que vários trabalhos desse período ficaram abaixo do seu talento. "Talvez eu tenha gravado músicas com arranjos pasteurizados demais, com muitos instrumentos acompanhando minha voz, o que eliminou a força da intérprete", diz ela. Gal Costa não admite que chegou a cantar músicas da dupla Sullivan e Massadas, famosas pelas composições de apelo fácil, para ganhar espaço na programação das rádios. Nem que se curvou às exigências das gravadoras. "É claro que minha gravadora, a BMG, pressiona. Mas não é diretor de gravadora quem determina o que faço.", afirma ela.

Foi há dois anos que Gal Costa começou a despertar da modorra artística que a marcou na década passada. Nesse processo, Wally Salomão teve um papel importante. Os dois amigos que haviam trabalhado juntos em diversos projetos (inclusive no antológico "Fatal", de 1971), encontraram-se casualmente na Bahia, durante a inauguração de um evento cultural coordenado por Wally Salomão, na época assessor da Prefeitura de Salvador. "Quero outra vez ser mandada por você", teria dito Gal Costa a ele. A parceria gerou como primeiro resultado o show "Plural", em 1990, e um LP de mesmo nome - uma espécie de ensaio geral para esse novo disco. "Ela nunca havia pensando em cantar Noel Rosa antes", afirma Wally Salomão, referindo-se às belíssimas "Coisas Nossas" e "Feitio de Oração", que fazem parte desse "Gal". "É importante resgatar essas composições de uma forma moderna", acredita a cantora. Outra preciosidade que ganha novo brilho na voz da baiana é "Caminhos Cruzados", de Tom Jobim e Newton Mendonça. Nessa faixa Gal Costa é acompanhada pelo piano acústico do próprio Tom, que não conseguiu recusar o convite da cantora para dar uma canja em seu disco.

Além de Noel Rosa e Tom Jobim, Gal interpreta também a chamada nova música baiana. Às volta como o carnaval de Salvador, do qual é um dos organizadores, Wally Salomão sugeriu que ela incluísse no novo disco a empolgante faixa "Revolta Olodum". "Esse estilo do Olodum está ficando muito gasto, toca até no programa do Leandro e Leonardo. Então tentei fazer algo diferente. Pedi ao Marco Pereira a inclusão de um violão", diz Gal Costa. Marco Pereira, 42 anos, professor de Música na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é o atual marido da cantora.

Vivendo desde 1965 no eixo Rio-São Paulo, ela tem acompanhado de longe a evolução da música da Bahia. As raízes da terra do Senhor do Bonfim continuam, no entanto, preservadas. "Sou um aiô, ou sacerdotisa, do terreiro de Gantois", lembra a cantora, cuja faixa preferida desse último disco é, por sinal, "É d'Oxum", homenagem a um dos orixás mais importantes do candomblé. Em "Gal", há lugar, ainda, para uma versão de "Tropicália", de Caetano Veloso- um dos hinos da geração dos chamados Anos Rebeldes -, e para uma interpretação muito especial da canção "The Lazies Gal In Town" (a garota mais preguiçosa da cidade), do americano Cole Porter.

Não é, no entanto, na escolha afinada do seu repertório que Gal vê o fator mais importante desta sua fase. Na opinião dela, a voz que andou aguda demais em outros trabalhos está diferente. "Tem uma nova densidade no meu canto, no alogamento das notas, na divisão rítmica", afirma ela. "A Gal amadureceu", acredita o amigo e maestro Wagner Tiso. "Seu novo disco é perfeito". A cantora não atribui as transformações a professores e sim à paixão por Marco Pereira, que o mestre de violão de Caetano Veloso, Almir Chediak, aponta como um dos maiores violinista do Brasil. "Você fica apaixonada e muda pra melhor", resume ela. Gal Costa seleciona no momento composições para um disco acústico, em que será acompanhada apenas pelo violão do seu marido. O professor da UFRJ teve, aliás, um agrande influência no resultado final de "Gal", ao dividir os arranjos com Cristovão Bastos e dar palpites em quase todas as faixas.

A maturidade da cantora é sensível, ainda, no processo de criação do disco. Grande parte do repertório estava incluído no programa do show "Plural". A familiaridade com canções como "Coisas Nossas" e "Feitio de Oração", que estavam fora do LP anterior, levou Gal Cosa a registrá-las no novo disco. Uma decisão sábia, em vez de encomendar composições a seus colaboradores habituais. Gilberto Gil, no entanto, não resistiu e mandou a inédita "Comunidá", com melodia de Celso Fonseca.

Para definir a nem sempre feliz trajetória dos últimos anos, a cantora gosta de citar uma frase da atriz Fernanda Montenegro. "Ela diz que todo artista tem safras e entressafras. Eu estou na safra", explica Gal Costa. Ao contrário dos outros períodos fecundos de sua carreira, ela vive hoje a maturidade de quem já passou por muitas etapas, pontuadas sempre por diferentes visuais - dos quais o mais famoso continua a ser dos cabelos grandes e armados da década de 60. drogas, atualmente, nem pensar. "Tomei drogas como todo mundo, mas não gosto de nada que me tire do ar. Já viajo muito em estado normal", diz ela.

Com a tranquilidade de quem continua ser apontada por boa parte da crítica como a melhor cantora do País, Gal Costa parece ter conquistado a liberdade de não acompanhar as tendências da moda ou a relações das músicas mais executadas pelas rádios. Os frequentadores assíduos do seu aparelho de som são os americanos Chet Baker, Ella Fitzgerald, Billie Holliday e Sarah Vaughan. Do time nacional, Paulinho da Viola e Djavan, ao lado dos indefectíveis Gilberto Gil e Caetano Veloso. A nova geração da MPB não tem muito prestígio junto a ela. Sobre a baiana Daniela Mercury, a voz deste verão, que Gal Costa conheceu rapidamente no carnaval passado em Salvador, ela diz: "Tem uma voz legal, é sensual". A respeito de Marisa Monte, sua opinião é bastante favorável: "Trata-se de uma das poucas cantoras novas que tem capacidade para ficar".

Quanto ao panorama musical do País, Gal Costa tem a lamentar o imediatismo e o mercantilismo. "No passado, o que se produzia nas rua merecia atenção. Hoje, tudo é fabricado nos estúdios", reclama ela. Desse caminho, a cantora não quer mais saber. Deseja que, de agora em diante, prevaleça seu canto. assim, ninguém mais a verá executando coreografias como nos seus shows passados, quando ela ficava o tempo todo correndo de um lado para o outro no palco. "Não vou adotar mais a teatralidade que ainda existia em "Plural", promete Gal Costa. seus planos inclume a formação de uma pequena banda para excursionar pelos Estados Unidos. "Quero cantar até ficar bem velha. Quando me aposentar, volto para a Bahia. Eu me vejo com Caetano, Gil e Bethânia, todos de bengala na mão, levando minha vida preguiçosa", imagina "the lazies Gal in town".

Revista Isto É - Anabela Paiva - 02 de dezembro de 1992

Comentários

  1. ''Este estilo do Olodum esta ficando muito gasto,toca até no programa do Leandro e Leonardo'':Frase de Gal que não fazia média com a mídia-populista,me surpreendi a cantora de repente querer gravar Marília Mendonça.

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    1. Sim,a Gal já gravou Roberto e Erasmo,Sullivan e Massadas,mas o Sertanejo não combina com a cantora.

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    2. Vocês nao entenderam... se ela REALMENTE GRAVAR, que é muito provável que seja boato, será pelo desafio de fazer de uma cançao brega algo sonoramente estranho.

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