Disco: Plural: Gal volta ao topo em seu novo LP


Marisas aos montes não chegam ao calcanhoto de Gal Costa. A cantora baiana de 44 anos prova que ainda é a melhor em "Plural", 21º LP solo em 23 anos de carreira, que chega às lojas na segunda-feira. Gal recobra o timbre agridoce dos anos 70, liberta-se da produção de estúdio indigente  dos "rambositores" Michael Sullivan & Paulo Massadas e apresenta um repertório renovado.

Segue a lição do violento ecletismo deixada pelo LP de Marisa Monte, mas sem cair na tentação do expressionismo fácil da colega. Gal opta pela discrição reflexiva, pela descoberta da diferença na estrutura profunda das canções.

Pela primeira vez, canta músicas da música afro-baiana contemporânea, gravando músicas dos blocos Muzemza e Olodum. Prova, sem a afetação típica dos intérpretes brasileiros de "standarts" norte americanos, o íntimo parentesco da bossa nova de Tom Jobim com a canção americana de Cole Porter e Rodgers & Hart. Dá elegância a uma lambada  - "Zanzando, do compositor baiano Carlinhos Brown. Mostra canções feitas exclusivamente pra ela por Marina ("Eu Acredito"), Caetano Veloso ("A Verdadeira Baiana"), Caetano e João Donato ("Nua Idéia"), Jorge Benjor e Arnaldo Antunes ("Cabelo"). Em "Fon-Fon", faz, mais uma vez, como "Balancê" nos anos 70, a ponte sexo-estética com Carmem Miranda. Até João Bosco aparece em parceria inusitada com Wally Salomão e Antônio Cícero ("Holofotes").

A concepção do disco é de Wally Salomão. Ele realizou uma "perestroika" no repertório da cantora. O trabalho levou três meses para ser concluido, de dezembro a fevereiro. No "release" que fez em diálogo com Antônio Cícero, Wally diz: "Queríamos arquitetar um repertório sensível, inteligente e não concebido para cortejar rádio".

A intenção de Wally não chega a resultados ortodoxos. A produção musical, a cargo do saxofonista e maestro Léo Gandelman, atinge o limite de qualidade possível dentro do padrão dos estúdios brasileiros. Há música pra ser tocada em rádio, com arranjos eletrônicos, como a divertida lambada de Carlinhos Brown, pontilhada por excessos surrealistas, e o bolero "Alguém Me Disse", tema da novela "Tieta".

O fantasma Sullivan & Massadas foi realmente exorcizado. Enquanto nos discos anteriores da cantora - "Bem-Bom" (1985) e "Lua de Mel Como o Diabo Gosta" (1987) - o toque de midas-remix de Massadas visava o "hit" brega, em "Plural", predominam os arranjos acústicos e delicados. O melhor deles é o de "I Didn't Know What Time It Was", feio pelo pianista Jotinha, para combo jazzístico e vibrafone. Também são interessantes as versões de "Brilho de Beleza" e "Ladeira do Pelô", feitas por Carlinhos Brown e o grupo Raizes do Pelô, formados pro membros do Olodum. O timbre de Gal, lâmina suave, contrasta com o caráter épico da percussão; surge uma nova maneira de cantar música afro-baiana, mais persuasiva do que exaltada.

Gal fia e combina canções como nenhuma outra. Suas melhores interpretações são as da conceitual "Cabelo", transmudada em funk, o quase-jongo "Holofotes" e, principalmente, do afoxé-lambada "A Verdadeira Baiana", saudação de Caetano à verdadeira baiana - que é falsa, a que toca tambores do candomblé, drum machini, e frequenta o "trieletrikitch". Nessa faixa, a cantora consegue ser ao mesmo tempo rigorosa e acessível ao padrão radiofônico. É esse ponto de bala que ainda falta àquelas que pretendem suceder Gal Costa como cantora numero um da MPB. Ponto que leva tempo.

Luis Antônio Giron - Folha de São Paulo -  10 de março de 1990.


Conheça a história de cada faixa:

01 - "Salvador Não Inerte"-"Ladeira do Pelô"
Gal fez um medley com os dois sambas-reggaes cantados pelo bloco Olodum, de Salvador. O primeiro é de Bobôco e Beto Jamaica e consta do primeiro LP do Olodum, "Egito-Madagascar", de 1987. O segundo, de Betão, estourou no carnaval baiano de 1987, na versão da banda Mel. Olodum gravou "Ladeira do Pelô", no LP de 1987. Caetano faz vocal nas faixas.

02 - "A Verdadeira Baiana"
Música feita pro Caetano especialmente para Gal Costa. O título parodia o samba "Falsa Baiana", criado pelo carioca Geraldo Pereira nos anos 40. A letra de Caetano afirma que a verdadeira baiana é falsa e que os três tambores do candomblé (Rum, Pi, Lé) se misturam com o "drum machini" (bateria eletrônica).

03 - "Beguim The Beguini"
Cole Porter compôs a canção em 1935 para o musical "Jubille", a orquestra de Javier Cugat gravou-a em 1937, mas "Beguin The Beguini", só estourou com Artie Shaw, em 1938. No cinema, a primeira versão apareceu em 1940, no musical "Melodia da Brodway", com um coro acompanhando Fred Astaire. Carlos Ramirez cantou-a no filme biográfico sobre Cole Porter "Canção Inesquecível", em 1946.  Uma das versões mais famosas está no songbook de Cole Porter, gravado por Ella Fitzgerald, em 1956. Gal canta em ritmo de bossa nova, seguindo a versão de Haroldo Barbosa, de 1948.

04 - "Fon-Fon"
Marcha carnavalesca de João de Barro e Alberto Ribeiro, gravada pro Carmem Miranda em 1935 para a Odeon. A música não chegou a fazer sucesso na época e caiu no esquecimento. Gal reinterpreta a música em ritmo de afoxé, enfatizando o erotismo da letra pra provar que Carmem colaborou na emancipação sexual feminina. "Acelerei, não é possível mais parar. Tu tens mais curvas que o trampolim/e a tua boca é um precipício para mim/Não faz assim."

05 - "Eu Acredito"
Canção composta por Marina especialmente para Gal. Segundo Wally Salomão, é uma mescla de canção de "ionosome cowboy" com a melancolia de Nelson Cavaquinho. O arranjo, com sintetizadores, guitarras e bateria, é de Nico Rezende.

06 - "Holofotes"
Canção com citações de compasso de jongo (7/4), assinada por João Bosco, Wally Salomão e Antônio Cícero. A música foi composta antes por Bosco. Mais tarde, Wally e Cícero rechearam a melodia com versos "animados por um desespero solar". "Um vazio pregnante", segundo Wally. A letra fala do fim da história e da Amazônia reiventada.

07 -  "Cabelo"
A letra escrita por Arnaldo Antunes, dos Titãs, foi gravada por Jorge Benjor no ano passado com um arranjo de "dixieland". Estranhamente, a gravadora WEA preferiu não incluí-la no LP "Benjor" (1989). Só lançou-a em fita cassete e disc laser. A versão de Gal é um funk.

08 - "Brilho de Beleza" 
Sucesso em Salvador, mais conhecido por "Muzenza do Reggae", é um reggae exaltação ao compositor jamaicano Bob Marley (1944/1981), feita pelo Nego Tenga, do bloco afro Muzenza, de Salvador. Caetano cantou a música no show "Estrangeiro", que percorreu o Brasil, ano passado. Gal a reinterpreta como samba-reggae, mais rápido que o original.

09 - "Alguém Me Disse"
Bolero composto por Jair Amorim e Evaldo Gouveia e gravado em 1960 pelo cantor baiano Anísio Silva (1923/1989). Na voz de Gal, é um dos temas da novela "Tieta" da Rede Globo e a música programada pela BMG Ariola pra tocar na rádio. Segundo Wally, Anísio Silva foi o pai do bolero "cool". Gal dá um toque de samba canção à música.

10 -  "Nua Idéia"
Outra exclusiva de Caetano para Gal. É a segunda parceria do compositor com João Donato. A primeira foi "A Rã", cantada por Gal no disco "Cantar" (1974). O arranjo de Donato, que também piano nessa faixa, usa cordas e o ritmo cadenciado do beguini, o ritmo caribenho de sucesso nos EUA nas décadas de 30 e 40.

11 -  "Zanzando"
Lambada do percussionista Carlinhos Brown, também autor de "Meia Lua Inteira", sucesso na voz de Caetano Veloso. "Zanzando" foi composta especialmente para Gal e já faz sucesso nas rádios de Salvador. Brown aciona sua maquininha de "nonsenses" metonimicos nos versos "Meu beijo né de boca/Meu bem é de coração/De boné abrindo o brejo/água suja de sabão".

12 -  "I Didn't Know What Time It Was"
Composta em 1938 pela dupla Rogers & Hart. Foi cantada pela primeira vez na peça musical "Garotas em Pencas", de 1939. A canção recebeu versões de Frank Sinatra (1957), Ella Fitzgerald ( 1956), Billie Holliday (1957) e Casandra Wilson (1988), entre outros.

Comentários

  1. O Giron (autor da resenha) adorava polemizar (o politicamente correto atingiu até a crítica).O álbum ''eclético'' da Marisa Monte também é lindo.

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  2. O LP em vinil faz parte da minha coleção.

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  3. A primeira vez que ouvi no rádio a música Salvador nao inerte/ Ladeira do Pelô, numa radio alternativa, antes de escutar o disco,nao sabia se gostava ou nao, mas intuia que era algo especial e diferente do decepcionante álbum anterior, Lua de Mel....Este disco me deu muitìssimas alegrías, me lembro de estar em casa e, de repente, sentir um desejo de escutar uma determinada faixa do disco, ir ao meu quarto e escutá-la 2, 3 vezes, e de passagem, escutar alguma outra.... me lembro inclusive de uma certa sensaçao de "orgulho" que sentía de minha cantora favorita, vendo a excelente repercussao do disco e logo depois, do show, na imprensa especializada...... e ela estaba linda!!!
    Um dos meus TOP 10 de GaL.

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