Crítica: Plural ao Vivo


A vida é curta e depois a gente morre, e raras são as vezes que se tem o privilégio de estar no lugar no lugar certo, na hora certa. Esta noite o lugar é o Palace, e a hora, pouco depois das dez da noite, quando dez/doze integrantes do Olodum entram no palco, comandados por seu regente, Neguinho do Samba, para sua "Saudação".

Já no saguão/bar da entrada, dá pra sentir uma cera carga eletromagnética no ar. A maioria chega com os olhos brilhando, como se soubesse que iria presenciar Um Grande Evento. Saudades acumuladas: há dois anos a cantora não pisava num palco, há seis não se apresentava em São Paulo e há dez, onze, seguia uma rotina sob encomenda para FMs de gosto duvidoso. por mais felizes e sorridentes, nenhum dos privilegiados presentes pode prever o renascimento das cinzas que estamos para assistir.

A Gal que entra em cena não é a do "Lua de Mel Como o Diabo Gosta", nem de "Festa do Interior", nem de Sullivan e Massadas. É a musa misteriosa que canta Caymmi e Macalé, Noel Rosa e Luis Melodia, guarânia e samba-canção e afoxé e rock'n'roll; a brasileira entre as grandes damas da canção (como Billie Holliday, Aretha Franklin, Dionne Warwick, Mavis Staples, Mahalia Jackson, Marion Williams), que me perdoem os órfãos de Elis Regina, os tietes de Marisa Monte e os derivados. Só por isso Gal merecia violinos e violocelos no palco, nem que fosse um mero quarteto de cordas: é dose aturar esses trimbrs falsificados em samplers e sintetizadores num show quase perfeito como "Plural".

Crédito deve ser dado à direção de Wally Salomão - poeta cuja parceria com Macalé rendeu maravilhas como "Vapor Barato" e o LP "Aprendendo a Nadar". Como "releitura do tropicalismo", o espetáculo ilumina, contrata e surpreende, com forte consciência cênica - sem o blá-blá-blá e a auto-indulgência do "Estrangeiro", de Caetano. ao contrário deste, "Gal Plural", o show é muito melhor que seu vinil de origem. São três blocos distintos, o primeiro deles apenas voz e violão, com Raphael Rabello rasgando o protocolo em obras-primas de Cartola, Ary Barroso, Noel Rosa e Geraldo Pereira, rubras tinturas de flamengo e Segóvia reforçadas por uma Gal melodramática. (Nas três vezes que vi o show, este bloco ocasionalmente resvalou em excessos estridentes). Na sequência, Rabello é substituído pela banda comandada com elegância por Cristovão Bastos - e o que é raro num show de intérprete de MPB, sem solos nem firulas de fedor funk-jazzista. Sensacional o arranjo quase atonal de "Tropicália", conceitualmente sanduichada entre "Coisas Nossas" e "Cabelo", num dos pontos altos do espetáculo. Mas o melhor mesmo fica para o final. Com o retorno retumbante dos tambores do Olodum, e a descida de uma grande reprodução da "Negra", de Tarsila, o último bloco é epifânia pura e a razão que talvez me leve a este show pela quarta vez, quinta vez.

"Brilho de Beleza" (do bloco baiano Muzenza) já era  a melhor faixa do LP, só que gravada e mixada sem o mínimo peso. No show, prioridades são invertidas e é a banda que, sutilmente, faz a cama para o ritmo vir à frente e detonar o transe. A lei da gravidade deixa de vigorar no auditório e o Olimpo de Gal recebe os tambores, os sintetizadores e nós, seduzidos sem misericórdia. Queimo as pestanas tentando lembrar onde e quando,se é que vi/ouvi algo assim nas duas últimas décadas. Só chegam perto os breves instantes de "Miséria", dos Titãs, em que surgem Mauro e Quitéria. Um terreno quase virgem, o futuro da música brasileira. Graça aos bons deuses ainda existem artistas como Gal, Wally, Olodum, Muzenza para iluminar um caminho cuja bússola não veio regulada pelo GMMC (Grande Monstro do Marketing Corporativo). Graças aos bons deuses, estão cogitando um novo "Plural" gravado ao vivo. Que seja, então um álbum duplo com o espetáculo completo. e ainda é pouco: o show merece um vídeo com câmaras e edição do nível de New Tour, registro da última turnê europeia de Bryan Ferry - que, aliás, junto com T.S. Eliot, nasceu no mesmo dia (26 de setembro) que esta hipnótica/convulsiva/alucinógena/afrodisíaca/fatal/tropical/plural/verdadeira/falsa baiana universal cujo nome é Gal.

José Augusto Lemos - Revista Bizz - 1991

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