Revista: "A voz de Gal dá calma ao Caos" (Wally Salomão)
Depoimento ao jornalista Eduardo Logullo
"Eu sou totalmente autodidata. A coisa da emissão da voz, da respiração.
É claro que já tenho uma emissão espontânea, isso veio comigo do além.
Quando eu era criança, minha mãe tinha uma panela enorme, dessas de
feijoada, e eu enfiava a cabeça na panela para ouvir meu timbre. Era uma
forma de estudar canto. Minha mãe, quando estava grávida de mim, só
ouvia violão clássico, Segóvia. Ficava concentrada para influenciar o
filho a ser musical. Ela queria que o filho fosse violonista clássico.
Todo dia ouvia religiosamente, para aquilo entrar... Sempre fui muito
exigente. Na Bahia, havia um programa chamado 'Escada para o Sucesso',
na TV Itapoam, onde muitos iam se apresentar. Os amigos, todos, e
parentes, pediam para eu ir. Mas eu já sentia que iria chegar aonde eu
queria. Não daquela maneira, num programa de calouros. Era uma coisa
muito maluca que eu tenho até hoje, uma espécie de premonição, meu lado
de artista, a coisa sensitiva. Eu tinha intuições, entendeu? Uma vez,
Gilberto Gil deu uma entrevista dizendo que eu era uma estrela
teleguiada. Acho que ele tem toda razão. Sou exigente, seletiva,
rigorosa, só fazia aquilo que queria. Sempre fui corajosa de buscar
coisas novas para mim."
"Eu era louca por João Gilberto. Quando João pintou, eu fiquei louca por
ele. Lembro-me que ouvia tudo dele com atenção especial. Antes dele
surgir, eu ouvia Luiz Gonzaga, Anysio Silva, essas coisas. A primeira
vez que ouvi João Gilberto no rádio eu nem sabia o que era aquilo, mas
me apaixonei de cara. Como nesta época eu não tinha vitrola, ficava
procurando João nos rádios, o dia inteiro atrás dele. A partir daí
comecei a mudar minha forma de cantar e emitir. A divisão da poesia na
música eu aprendi com João Gilberto. Comecei a me preocupar em dividir
certas frases em determinados momentos. Mas a forma de dizer a palavra
com música é natural em mim. Um dia (naquela época), eu estava na casa
de Dedé e Sandra Gadelha, quando Silvio Lamenha apareceu lá e disse que ia
se encontrar com João Gilberto. Aí eu gritei: 'ah, me leve, pelo
amor de Deus!'. E fui com ele. João estava no prédio em que a mãe dele
morava, na Barra. Quando cheguei, Silvio me apresentou: 'esta é
Gracinha'. João disse que que já tinha ouvido falar de mim, pois naquele
tempo eu cantava em casas de amigos, em reuniões, etc. Ele perguntou se
eu tinha violão, e eu fui correndo buscar. João ainda estava casado com
Miúcha naquela época. Depois pegou meu violão e ficou dedilhando. Aí
virou pra mim e disse: 'cante Mangueira'. E, fora 'Mangueira', cantei o
repertório dele inteiro. Ele não dizia nada, enquanto eu pensava: 'meu
Deus, que situação...' No final, ele me disse: "Você é a maior cantora
do Brasil". No dia seguinte encontrei Caetano e contei que tinha ficado
com João. Caetano ficou com o olho assim, pois também era apaixonado por
ele. Eu fiquei catatônica uma semana. Depois deste encontro, me tornei
uma pessoa radical. Não existia mais nada, eu não gostava de mais NADA!!
Era Deus no céu e João Gilberto na terra. Radicalizei tanto nesta época
que quanto depois, quando me joguei na coisa do grito, da guitarra, da
maneira mais louca e corajosa. Mas com João Gilberto eu entrei em estado
de graça. Ainda naquela época, eu encontrei Sérgio Mendes na Bahia, e
ele me convidou para ir cantar nos Estados Unidos fazendo parte do grupo
dele."
"Na fase da repressão eu fiquei no Brasil, tentando manter mais ou menos
viva a imagem de Caetano e Gil, através do meu canto. De repente, eu
nem tenho muita consciência de como fiz aquelas coisas, aquele discos
(...) O ritmo, o vigor da coisa rítmica negra sempre me fascinou muito.
Embora não tanto como Gil, Djavan ou Jackson do Pandeiro, sempre
assimilei bastante os elementos percussivos em meu trabalho. Creio mesmo
que isso mantém em algumas antigas gravações minhas, até hoje. Claro
que diferente. Agora tenho uma técnica vocal muito maior, outra
compreensão musical, outro feeling; tudo flui junto, harmonia e
música. Atualmente questiono alguns trabalhos meus. Mas essa coisa de
altos e baixos está sempre ligada ao artista. Todo mundo erra, né? A
capa de "Minha Voz", por exemplo, eu não gosto, acho fake.
Não tenho o costume de ouvir sempre o que gravei. Quando estou fazendo
um disco, eu ouço muito, até ficar pronto. Quando é entregue para a
gravadora, eu paro de ouvir. Outro dia, por acaso, fiquei ouvindo "Caras e Bocas" e achei um disco forte, com músicas bonitas. Não ouvia há anos, e adorei. Já "Lua de Mel" não gosto mesmo."
Revista AZ - São Paulo - março de 1990
A Elis dizia que todo artista tem altos e baixos em sua discografia,exceto João Gilberto.Deve ser a mesma opinião de Gal.
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